sábado, janeiro 28, 2012


                Suicida
 R. Lousa Santos

(Ded: Ao irmão de uma amiga)

Cresci e vivi de uma maneira normal, mas algo acontecia comigo. Era estranho, diferente, não consigo me interpretar. Não sou bom com as palavras, pelo menos para dizer o que eu sinto neste momento, não o sou. Não consigo dizer o que sinto, mas às vezes eu consegui, algum dia atrás eu consegui. Só que não consigo mais.
Conheci meu amigo quando entramos na faculdade, entramos no mesmo ano, passamos no mesmo vestibular, nós éramos os extremos. Eu passei em primeiro lugar, ele, passou em último. Nós fomos morar no mesmo apartamento, ele trabalhava meio período para conseguir pagar o aluguel e os materiais escolares, eu ganhara bolsa do governo para estudar, ou seja, eu não precisava trabalhar para pagar o apartamento.
Agora, vamos para o início!
Eu não o conhecia, mas sei o que aconteceu com ele.
Ele era bom, mas não conseguia saber que aquela bondade era pura ingenuidade, ingenuidade que eu nunca tive, eu sempre vi e sabia usar o que eu via a meu favor.
Um dia vi minha tia com um homem, os dois estavam se agarrando, se beijando, se pegando, ela não queria que ninguém soubesse daquele namoro e eu, como sempre, soube muito bem como me aproveitar da situação. Bons tempos aqueles. Ganhei muito com aquele segredo, só que acabou rápido, minha tia descobriu que ele a traía, por fim, acabou-se o meu tempo de vida mansa.
Mas deixemos de lado a minha infância, quer dizer, vou compará-la um pouco com a dele, meu amigo.
Enquanto eu comia patê, purê de tudo, caviar, bebia Coca Cola, Antártica ele comia farofa, nos dias que não ficava sem comida; bebia suco de limão e água que era fervida depois que ele a pegava no rio próximo à cidade.
Isso não importa!
Enquanto eu estudava no colégio particular, que sempre era elogiado por todos, ele estudava no decrépito colégio público. Sempre disse que o que os colégios públicos precisam é de professores doutores e que ganham um salário digno, que seja o suficiente para que eles não precisem trabalhar mais de dois turnos e usem o tempo livre para pesquisar e preparem uma aula atraente e que instiguem seus alunos a aprenderem.
Essa foi nossa infância, pelo menos um pouco dela.
A nossa adolescência não mudou muito.
Enquanto eu malhava na melhor academia da cidade, ele se exercitava nos imundos parques, em que havia um poluído córrego que, teoricamente, serviria para umedecer a cidade, mas servia apenas como depósito de mosquito da dengue. Não adiantava nada as imensas campanhas para acabar com os focos sendo que o maior deles era alimentado pela própria prefeitura.
Bem, nós passávamos um pelo outro durante festas públicas que eu ia com meus amigos, só que não nos sentíamos amigos, não éramos amigos. Não nos falávamos, éramos seres independentes, um vivia sem a necessidade do outros, nenhum se importava com o outro, mas essa situação mudou quando realmente nos falamos.
Chovia, naquele dia, como chove hoje, e eu estava atrasado para chegar à escola, não passava táxi nenhum, então eu resolvi ir para o ponto de ônibus ver se assim eu conseguiria chegar para assistir, pelo menos, a última aula. Lá estava ele. Ele também esperava o ônibus, mas não por estar atrasado e sim por que era o que fazia sempre, o transporte mais em conta, porém o mais desprezível. E, também como sempre, o ônibus estava atrasado.
Eu sentei-me ao lado dele.
— Para onde você vai? – Perguntei, para tentar puxar assunto, a viagem era longa.
— Vou para a escola no fim da cidade. E você?
— Eu?! Estou indo para a escola no centro.
— Ah…!
Sei que naquele momento ele deve ter pensado que eu não passava de um rico metido a besta – todas as escolas do centro são escolas particulares –, porém não sou assim, mesmo eu estudando em uma escola particular, mesmo tendo dinheiro para ter tudo o que quero, eu não era metido, e eu não me gabava do que tinha, ou do que os outros não tinham. Ao contrário, lutava pela igualdade, mesmo não dando tudo o que eu tinha para esse fim. Mas para a igualdade eu não precisaria dar tudo. Ou precisaria? Sei lá.
A igualdade não é a exclusão do milionário e do miserável, mas sim a inclusão total da classe média média, ou seja, a junção das classes altas, baixas, (mais baixas ainda), média baixa e média alta. Mas pouco… Nem sei mais o que eu estava pensando.
— Você vai prestar vestibular esse ano? – Eu perguntei, continuando o assunto, assim que perdi minha linha de raciocínio.
— Vou sim! Pretendo ser contador.
— Boa profissão! Mas acho que ser contador não seria uma boa profissão… para mim, é claro. Prefiro geografia.
— Também têm muitos números…
— Sim, mas não são os números que me incomodam, é o gosto pela pesquisa. Não gosto muito de economia.
— Ah, sim.
Naquele instante o ônibus já havia chegado ao meu ponto. Então eu me levantei e fui para a escola, caminhando o restante que faltava, lógico.
Aquela foi a primeira vez que nos encontramos. A vez seguinte que nós nos encontramos foi no dia do vestibular. Nós ficamos na mesma sala e, por coincidência, prestamos vestibular para a mesma cidade, onde fomos morar juntos, no mesmo prédio. Naquele dia nós não conversamos muito, nem mesmo trocamos uma palavra sequer.
No dia em que fui ver o resultado no local onde fiz a prova, nós nos encontramos novamente, pela terceira vez.
Sabe aqueles momentos em que se percebe que existem algumas pessoas que vão continuar a fazer parte de nossa vida? Bem, foi aí que eu percebi.
Eu me aproximei dele. Ele estava debaixo que uma árvore, e, quando eu me aproximava, um pequeno cisco caiu em meu olho, era irritante, mas eu não conseguia tirá-lo, nunca consegui. Um simples cisco mudará minha vida.
— E aí, passou?
— Sim, passei, em último lugar. – Disse ele tristemente. – E você?
— Eu também – Disse como quem não se importava em que posição havia saído. Eu saí em primeiro, como já disse. – Vamos sair para comemorar?
Ele pensou por um instante.
— Vamos, né!
Se não fosse aquele cisco o dia teria sido perfeito.
Logo percebi que ele era tímido e não gostava de se soltar, ou seja, totalmente ao contrário de mim, que gostava de esbanjar a alegria que eu sentia, e eu abusei. Diverti o suficiente para um mês inteiro. Quando o dia já estava amanhecendo eu voltei para a minha casa e desmaie em minha cama com colchão ortobox, e ele, meu amigo, voltou para o seu barraco e caiu duro na cama com colchão de palha, nem tanto, mas quase.
Naquela época ele já trabalhava, mas não se dava ao luxo de comprar uma boa cama. Ele guardava o dinheiro para ir morar fora, agora que sabia que iria ir estudar em outra cidade, em outro mundo, em outra economia. Onde as responsabilidades iriam cair totalmente em seus ombros. Eu, claro, não me importava com isso, pois eu havia recebido a proposta de receber uma bolsa integral do governo, que aceitei imediatamente, óbvio.
Como o governo iria pagar uma bolsa para mim, eu tive que seguir suas propostas e ir morar no apartamento indicado, e, para minha surpresa, ele foi morar no mesmo prédio que eu.
Eu descobri que éramos vizinhos no primeiro dia de aula. Era no período matutino e eu já estava atrasado, oh vida, uma verdadeira corrida contra o tempo. Quando fechava a porta de meu apartamento eu o vi fechando a do dele.
— Você aqui? – Perguntei.
— Sim! Você também?
Não!
— Olha que coincidência…
Ele estudava no período noturno, mas tinha que trabalhar para conseguir pagar os estudos. Às vezes ele precisou de ajuda, o dinheiro não deu para suprir todas as dívidas, mas eu o ajudei nessas dificuldades. O espírito da igualdade no ar. Ajuda aos necessitados.
No primeiro semestre de aulas, ele me disse que queria desistir. Dizia que estava cansado, não estava conseguindo conciliar os estudos com o trabalho, as dívidas o deixava estressado, então fiz-lhe uma proposta e ele aceitou.
Fiz um pedido para a administração da universidade, que entrou em contato com o governo. Eles me autorizaram a dividir o apê com meu amigo. Assim ficava mais fácil para ele, dividindo o aluguel.
Assim que ele mudou para morar comigo nós saíamos todas as noites para a balada, assim que ele chegava da universidade.
Na festa ele ficava sentando olhando de um lado para o outro, sem falar com ninguém, tampouco bebendo ou dançando. Em cada intervalo de uma música para outra eu ia até onde ele estava.
— Vamos, cara! Temos que nos divertir.
— Não tenho coragem, acho que sou tímido.
Ele disse que achava.
Eu bato em suas costas.
— Deixe disso.
Eu ia até o bar e pegava dois drinques, um para ele e um para mim. Quando cheguei perto dele, vi que ele não havia se movido. Coloquei a bebida na mão dele.
— Beba um pouco. Você vai se sentir melhor.
Depois que terminei minha bebida vi uma garota sentada no bar, sozinha. Era a deixa para eu me aproximar. Deixei-o quieto com a bebida na mão e fui me esbaldar.
Depois de algumas danças, alguns beijos, algumas bebidas eu voltei para onde meu amigo deveria estar, pois ele não estava ali. O barman, assim que perguntei se ele o havia visto, respondeu:
— Acho que ele não está acostumado com muita bebida. Ele bebeu alguns drinques e… Sei não, mas parece que passou mal. Ele foi para o banheiro. – Apontou.
— Obrigado!
Segui em direção ao banheiro. Ele estava lá, num Box, vomitando.
— O que aconteceu?
Ele secou a boca com as costas da mão e olhou para mim, sorrindo:
— Aquilo é muito bom, é o…
Ele virou-se rapidamente para o vaso sanitário para continuar a vomitar. Depois olhou sorrindo para mim.
— Quero mais! – E riu, movimentando as mãos sem saber onde colocá-las.
Meu amigo veio em minha direção, cambaleando. Se não tivesse se encostado a mim teria caído no chão imundo do banheiro.
— Você compra mais para mim?
Ele havia bebido demais.
— Não, não. Não vou comprar mais nada. Acho que vai ser melhor irmos para casa.
— Que é isso? – Disse ele, cuspindo em mim e sorrindo ao mesmo tempo. Estava completamente bêbado. O hálito comprovava o que eu dizia. – Eu quero mais um gole, só mais um golinho assim – Juntou o polegar com o indicador –. Por favor!
— Vamos embora. Amanhã teremos que acordar cedo. Vamos embora.
Ele se soltou de mim e ajoelhou aos meus pés. Juntando as mãos como se fosse fazer uma oração:
— Por favor – riu –. Só mais um gole.
— Não! – Disse incisivo.
Peguei-o pelo braço e o arrastei para fora da boate. Sabia que muitas pessoas olhavam para mim, e, principalmente, para o escândalo que meu amigo fazia.
Quando parei para pagar nossa conta ele quase pulou em cima do balcão exigindo que o barman desse um “golinho” para ele. Não autorizei.
Assim que chegamos ao apartamento ele começou a chorar feito criança mimada, fazendo birra para não sair da piscina. Ele não falou nada comigo, simplesmente foi para o quarto e dormiu. Eu fiz o mesmo.
Quando acordei, ele ainda dormia, tive que acordá-lo.
— AI! – Gritou ele assim que o gritei, colocou logo a mão sobre a cabeça. – O que aconteceu?!
— Acho que você não está acostumado a beber de mais, só isso.
— Ah, lembrei. Ai, ai! Como eu pude fazer aquilo? – Parecia que ele estava vendo um filme gravado quando ele ainda era criança.
— É a pinga, a danada da pinga, meu amigo!
— Dói, minha cabeça dói.
— Deve doer mesmo. Parecia que nunca havia ouvido falar em álcool. Mas levanta. Você tem que ir trabalhar e eu tenho que ir estudar. Então se apronte.
— Não quero. – Disse ele com manha, se enrolando nos cobertores.
— Então fica. Já são sete horas…
— O quê? – Ele já estava de pé, não ligava mais para a dor de cabeça.
— Isso mesmo. Sete horas. Estou indo para a universidade. Até mais.
Foi o primeiro dia que ele chegou atrasado ao trabalho. Depois disso não se importou mais com o horário, até que foi demitido por justa-causa. Sendo assim teve que sair perambulando pela cidade a procura de um novo emprego para ter dinheiro. Custou a encontrar.
— Vamos ver se agora aprende a respeitar o horário! – Eu disse, autoritário.
— Claro. Lá, parece, é mais rigoroso ainda.
E assim continuamos. Às vezes íamos a boates, mas eu passei a tomar mais cuidado com a disposição dele com a bebida. Até que no último ano na faculdade ele se apaixonou.
Ah! O amor… o amor…
Ele amava aquela garota. Seria interessante dizer, eu também, mas não. Eu não a amava. Até porque nossos gostos não eram os mesmo, ainda bem!
O amor passou a deixá-lo mais alegre, feliz, até. O curso acabou. Ele abandonou a universidade para ir trabalhar em uma empresa, eu fiz a pós-graduação.
Anos mais tarde eu recebi um convite, era do casamento de meu colega. Ele se lembrara de mim. Era tão bom estar feliz…
Foi quando o cisco no meu olho me incomodou novamente, eu deveria ir ao oftalmologista. Há quanto tempo eu não me lembrava dele?
Muitos e muitos anos…
O casamento dele seria dentro de um mês, eu teria que fazer compras e me lembrar o que ele gostaria de ganhar. Eu não conhecia a sua noiva, mesmo se fosse a sua primeira namorada, eu apenas havia trocado algumas palavras com ela. O que eu poderia comprar para os dois?
Saí pela cidade. Entrei de loja em loja. Vi coisas que ele realmente iria gostar de ganhar, mas sabia que ele iria ganhar. Eu queria comprar algo que realmente representasse os meus votos para o casal. Foi quando me lembrei…
A lua estava cheia quando cheguei. Era no ponto de ônibus onde havíamos nos conhecido de fato. Eu iria fazer um vídeo caseiro, contando a história de nossa amizade para que a mulher do meu amigo a soubesse do ponto de vista de outra pessoa sem ser a dele.
Comecei filmar. Eu era um narrador nato. Quando cheguei ao local onde fizemos a prova vi o local onde estaria a árvore que deixara o cisco cair em meu olho, esse cisco nunca mais saiu. A árvore não estava ali, no lugar havia uma calçada de concreto.
Continuei a gravação, quando terminei o vídeo voltei para a cidade e comprei uma televisão de plasma, sabia que ele iria gostar. Coloquei o DVD com o filme que eu havia gravado junto do televisor e mandei embrulhar o presente.
O dia do casamento logo chegou. Eu me dirigi para a igreja – com certeza obrigação da esposa, pois ele não era muito ligado a religião – onde se realizaria o casamento. Eu havia vestido um terno preto e estava igual aos outros convidados.
Assim que a noiva entrou e todos os convidados, inclusive eu, nos levantamos quase não a reconheci. Mas era ela mesma, a primeira namorada do meu amigo, mas bonita, porém a mesma.
Meu grande amigo estava no altar, sorrindo, esperando a sua noiva. Quando o padre perguntou se alguém sabia de algo que impedia o casamento eu quase perdi a respiração, da maneira que meu amigo era sem sorte eu pensava que alguém iria aparecer e acabar com o casamento, mas, para a alegria de todos, nada aconteceu.
Depois do casamento veio a festa. Onde eu tive a oportunidade de conversar com ele. A felicidade reinava, mas o cisco me incomodava, o que era aquilo?
Contei para ele que eu havia feito uma surpresa e ficamos a conversar, até que eu resolvi ir para o meu novo apartamento.
Eu estava cansado, pois já estava tarde, cheguei e fui direto para a cama. Não tirei nem o meu terno.
Quando acordei ainda não havia amanhecido, mas eu estava morrendo de sede. O cisco também me incomodava. A chuva ricocheteava o ar lá fora, estava grossa. O vento que passava por algumas frestas uivava feita lobo uivando para a lua cheia.
Fui à cozinha e bebi água, quando voltava para o quarto, vi uma faca sobre a pia.
A faca era de aço inox que brilhava, o cabo de madeira era amarelado, eu a peguei. O aço era frio, eu a olhei, havia aquela curva que cortava e aquela parte reta, a ponta era fina. Apertei o dedo na ponta, doía. Vi também que uma gota saía no lugar em que eu havia espetado a faca. Era tão bonita, a gota e a faca! Larguei-a sobre a pia e comecei a desabotoar o terno, deixando o meu peito à mostra.
Como seria a sensação de uma faca transpassando um coração?